PATROCÍNIO/ Nas últimas décadas, a arte tem perdido o jogo como bem público
Daniela Castro*
![]() |
Cartaz da peça "Cielo Arte" do grupo catalão La Fura dels Baus patrocinado pela empresa Cielo. |
A arte joga com o inegociável da vida social. Ela desestabiliza o estabelecido, fricciona, negocia, destrói, revela, ilustra, dialoga com a matriz ideológica que sustenta certa hegemonia de valores. A instituição cultural que abriga tais práticas veicula essa produção de saberes não hegemônicos, expõe aquilo que há nas entrelinhas desses discursos, e assim nos instiga a imaginar outra sociedade, um lugar melhor. Ou seja, a arte é fundamentalmente de cunho social e político.
Não se trata aqui de reduzir o papel da arte, mesmo que assim o pareça na tentativa de defini-la em um parágrafo. Trata-se de dizer que nos últimos anos ela tem perdido o jogo como um “bem público” da vida social para se tornar um “ótimo negócio” dos interesses privados.
Há aqueles que se regozijam com a explosão do mercado de arte e o lugar que ocupa nele a arte brasileira. Novas galerias surgem em São Paulo a cada semana, o mundo conta com mais de 300 bienais, e as inúmeras feiras celebram o interesse crescente pela arte, a julgar pela alta visitação e o alto volume de vendas. No Brasil, centros culturais privados geridos com dinheiro público obtido por incentivos fiscais exibem seus nomes fantasia nas fachadas de prédios imponentes em endereços nobres com orgulho filantrópico.
Precisamos retroceder alguns séculos para entender como tudo isso começou. Desde o primeiro momento em que artistas começaram a viver de sua produção, alguma forma de mercado de arte negociava transações entre indivíduos que detinham poder e outros que detinham talento artístico. O primeiro crítico do mercado da arte, Gerald Reitlinger, atestou em seu clássico “The Economy of Taste” (1961) que o mundo não poderia oferecer enormes quantias de dinheiro à arte até que o mundo obtivesse enormes quantias de dinheiro. Isto é, após a industrialização e financeirização do capitalismo.
![]() |
Obra de 100 milhões de dólares de Damien Hirst |
Foi a partir dos anos 1980 que, em resposta à crise de estagflação mundial, o capitalismo dirigido pelas finanças disseminou a sua lógica inexorável do mercado caracterizado pela ausência de regulamentação e voltado para a maximização do valor aos acionistas por todos os cantos do planeta. E a velha novidade é que os executivos do capitalismo financeiro que patrocinam as artes e ocupam assentos em conselhos administrativos de museus são os mesmos acionistas voltados para a maximização do valor a qualquer custo por todos os cantos do planeta.
O caráter filantrópico associado ao patrocínio empresarial à cultura como “bem público” mascara outro tipo de maximização do valor: o do capital simbólico. Tal como os antigos empreendedores, as elites corporativas lutam para consolidar sua posição e seu status dominantes por meio de uma intrincada rede de relações econômicas e sociais. Engajar as companhias no comando das artes e atividades culturais é parte dessa estratégia.
Em outras palavras, qualquer tipo de patrocínio corporativo à arte e cultura, seja por meio de doações, seja principalmente por incentivos fiscais, gera lucro. Portanto, não há mera coincidência entre a bilionária ascensão do mercado de arte contemporânea e a desregulamentação do capital financeiro. Pautado por uma economia desterritorializada de especulação do capital, o neoliberalismo encontrou na obra de arte, como mercadoria de especulação sobre valores futuros, sua alma gêmea. Aquilo que se convencionou chamar de “Economia Criativa”, a partir dos anos 2000, foi a bem-sucedida união em comunhão de bens da economia neoliberal com a arte. Uma expressão que designa deliberadamente a privatização da cultura.
Os riscos que esse cenário nos traz já são sentidos. Em primeiro lugar, estamos diante de uma situação em que o antigo modelo de comércio varejista das galerias tem sido substituído por amalgamações globais de larga escala, como a Hauser & Wirth & Zwirner e a Gagosian. A formação de conglomerados no mercado e instituições artísticas (Guggenheim) aponta para a ideia de que a arte está cada vez mais enredada nas tentativas de reassegurar o poder monopolista, berço do capitalismo da propriedade privada, cuja geração de riqueza depende de alegações de singularidade e autenticidade distintivas e irreplicáveis.
Essa afirmação nos coloca um problema grave, pois o discurso gerado pela produção de conhecimento acadêmico e intelectual no campo da arte corre o risco de ser instrumentalizado como commodities do consumo de trabalhos artísticos diante da ascensão da competição e globalização no negócio da arte. Em segundo lugar, a própria criação artística - tradicionalmente vinculada à interiorização, ao tempo lento e à autonomia de pensamento - se vê obrigada a adaptar-se ao ritmo da demanda do mercado.
Isso força um esvaziamento crítico de sua produção, a aprisiona a clichês do vocabulário de experiências pessoais comercialmente conformistas e resulta em um enfraquecimento nas relações formais e de conteúdo. O brasileiro Vik Muniz tornou-se mundialmente famoso por suas releituras icônicas da história da arte feitas com macarrão e chocolate. E as expressões da pobreza e do abandono do Estado das classes baixas urbanas, uma vez retratadas pela dupla Os Gêmeos, agora figuram em lenços da nova coleção da Louis Vuitton.
![]() |
Releitura da imagem de Che Guevara por Vik Muniz usando café. |
Se a produção da arte, como jogo com o inegociável da vida social e desestabilizador de discursos hegemônicos, passa a ser instrumentalizada para a manutenção do poder e status da elite capitalista privada, então estamos diante de um “direcionamento privatizado” das dimensões de fruição e de possibilidade de um real posicionamento crítico perante o mundo.
* Daniela Castro é formada em História da Arte e Estudo da Cultura Visual pela Universidade de Toronto, Canadá. Atua como escritora e curadora independente.
(FONTE: Revista Carta Capital, 6 de fevereiro de 2013, Ano XVIII, nº734, p. 48 -49)
Nenhum comentário:
Postar um comentário